Irlanda, the great famine: histórias que fizeram História

 
« quando eu era um garoto, ainda na irlanda, costumava pular aqueles muros, belos amontoados de pedras à moda neolítica... de um lado, morava o'reilly, que tinha uma filha, do outro, mcloughlin, de quem meu pai adorava o whiskey caseiro (note-se o e que lhe distingue o sabor genuíno)... aos fundos, bem distante da casa, um pouco mais alta, a única muralha que eu não ousava pular dava para uma falésia... cento e cinquenta e três metros de queda, todos eles contados, absolutamente livres... porra, como era lindo aquele mar!

eu não pulava o muro de o´reilly, que separava o nosso verde do seu verde, os mais verdes que possas imaginar, para bolinar a sua menina... claro, ela era uma garotinha, nascemos no mesmo dia, ao fim de uma jornada cansativa... ainda não era minha namorada, mas eu tinha uma espingarda de pau, um estilingue, e levava algumas pedras nos bolsos para proteger cathy o´reilly de um eventual ataque dos ingleses naquelas longas caminhadas que fazíamos nas tardes de verão... na realidade, eles costumavam aparecer apenas uma vez ao ano, poucos dias após a colheita... geralmente, um grupo de cinco ou seis... o almofadinha no comando sempre tinha em mãos um papel emitido com um timbre que dizia ser da rainha vitória, a afirmá-lo como representante do legítimo proprietário, um tal lord de merda que vivia em londres... vinham cobrar a renda anual...

naquele ano, o segundo consecutivo, não havia batatas a colher, nem mesmo para o nosso próprio sustento... elas apodreciam antes da colheita... nenhum florim, sequer um penny... desta vez, os ingleses estavam em maior número, um pequeno exército... premeditaram não apenas espancar a todos, incluindo meu pai - como no ano anterior, quando mataram o velho mcloughlin, que tentara ajudá-lo -, a ordem agora era expulsar os inquilinos... e queimaram tudo... movidos por um mal que nunca compreendi, sequer levaram os poucos animas, apenas os mataram... no dia seguinte, comemos carne...

as filas cabisbaixas que nos levavam a cork, a dublin ou onde mais, foram dispersando-se... um milhão e meio de irlandeses morreram de fome ou das suas consequências, incluindo meus pais, talvez meus irmãos... fui um escolhido... dois ou três milhões partiram para a américa... reencontrei cathy muitos anos depois, em londres... éramos católicos, portanto tivemos sete filhos juntos, e juntos partimos para o brasil levando quatro deles... chegamos com três... um ano depois, eu, que viera para trabalhar como professor, estava abrindo uma estrada, uma tal linha massaranduba... exausto, buscando o sono numa cabana de pau-a-pique, tive um braço arrancado por uma onça e sangrei até morrer... cathy terá penado muito para criar nossos filhos, mas acredito que teve netos e tudo mais...»

Postado por t.o r.k.m u.r p h.y...
Google Ilustr.

Um repost (2008) de um texto que, continuando a emocionar-me, me faz sentir a necessidade de o dar a conhecer, de o divulgar, fazendo uso dos recursos disponíveis, porque sei ser uma narrativa sentida e vivida, de muito próximo, pelo autor, herdeiro directo deste pedaço de história da Irlanda que tão primorosamente (em meu entender) conseguiu retratar.

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